“La mer, qu’on voit danser, le long des golfes clairs (…) Et d’une chanson d’amour, la mer, a bercé mon cœur pour la vie…” (La Mer – Charles Trenet)
Mês de agosto.
Em Brasa Hill, terra natal de Simone de Lyon, dizem que é mês de cachorro louco.
Na Casa do Marcel, é o mês das “grandes férias de verão”. E da busca pela água.
Simone (que não é cachorro não…) lembra de quando ainda não era de Lyon e quase enlouquecia durante esse período. Ela trabalhava para empresas marcelesas e via agonizar, ao oitavo mês de cada ano, as ínfimas chances de finalizar qualquer projeto dentro do prazo. Causa mortis : matrizes parisienses invariavelmente desertas, onde até as secretárias eletrônicas pareciam desfrutar dos “congés payés“…
Mas os bons tempos de “burn-outs“ e de pilhas de dossiês acumulados do tamanho da torre Eiffel sobre a mesa de trabalho já estão bem longe. Hoje em dia, Simone aproveita pra desfrutar os verões ao lado do seu sensato Marcel, que está mais pra um gato tranquilo que não perde o equilíbrio por (quase) nada, seja em agosto ou em qualquer outro mês.
A empresa para a qual ele trabalha é japonesa. Mas contando com uma equipe reduzida em território da CGT – a temida Confederação Geral do Trabalho, liderada por marceleses ainda mais bigodudos que lutam para que agosto continue sendo agosto – ela é obrigada a conceder a seus empregados uma longa pausa. Cinco semanas. Uma verdeira eternidade, se comparada à da Terra do Sol Nascente, onde, diz a lenda, um trabalhador tem apenas 15 dias de folga, mas onde também é de “bon ton” recusar o desfrute de metade deles, como símbolo de reconhecimento e de gratidão a seu empregador.
Cinco semanas, de calor e de tempo livre pra fazer o que bem entender. Marcel respira. E, atraído pela água como mariposa pela luz, ele pode sonhar, como grande parte de seus compatriotas, em absorver um pouco da brisa das cidades costeiras.
É nesse momento que Marcel une-se a uma curiosa espécie chamada “vacanciers“. Ela surge em meados de julho e desaparece misteriosamente nos primeiros dias de setembro.
Seus indivíduos são geralmente classificados em quatro grandes famílias :
- Os “Sessentaeoitistas“, que percorrem o país de bicicleta e acampam em lugares onde a natureza é espetacular, como à beira do Ardèche por exemplo. Alguns somente enquanto esperam tranquilamente a volta do comunismo (entre eles, alguns bigodudos da CGT). Ou Godot. O que vier primeiro
- Os “Bourgeois“, que têm residências “secundárias”, as famosas “villas“, geralmente equipadas com piscinas, herdadas ou conquistadas com certa discrição, próximas a locais badalados (geralmente Côte d’Azur…);
- Os “Baroudeurs“, representados por um punhado de aventureiros curiosos rumo a destinos exóticos e úmidos, como o Vietnã ou a Índia (as praias da Argélia andam muito perigosas…)
- Os “Outros“. Ou seja, todo o resto dessa salada mista que é a classe média marcelesa, com seus filhos de genuínos Sessentaeoitistas operários, certinhos demais pro exotismo Baroudeur mas insuficientemente ricos pra desfrutar da residências secundárias dos Bourgeois (a não ser que tenham amigos pertencentes a essa casta, o que é raro pois raramente se misturam. Ao contrário das demais famílias citadas, os bourgeois podem até apreciar Godot mas não querem ver o comunismo nem pintado de verde.)
Os “Outros” formam uma camada mais ou menos representativa da população que parte em busca de água em grupos, geralmente nos arredores dos Club Med. A ideia é poder se esticar numa espreguiçadeira e cantarolar “Il y a du soleil et des nanas, darladiladada“ como um verdadeiro “Bronzé “. Esses espécimens podem ser encontrados também em hotéis duas ou três estrelas localizados em vilarejos banhados por dedinhos do Mar Mediterrâneo ou em áreas de camping tomando “pastis“, verdadeiros reis do pedaço durante os 20 dias que ocuparem o bangalô “Habana Top Presta Maxi-Luxe” des Flots Bleus.
Mas entre esses, há também subfamílias menos barulhentas e mais pudicas. Que partem em “petit comitê ” rumo a destinos mais discretos, quase em busca de uma continuação de seus cotidianos silenciosos. Marcel faz parte de uma delas. Quando criança, ao invés de descer para os litorais mais ensolarados como a maior parte dos “gamins” de sua idade, ele ia com Mamãe Marcel e Papai Marcel até a região da Bretanha.
Empregados em usinas siderúrgicas da nublada região leste do país, essas pausas estivais representavam as únicas oportunidades de fugir do refrão monotônico inscrito na partitura de suas vidas de família de classe média. Atravessavam o país até a antiga terra dos Celtas pra contemplar o Oceano brabo (porque pra um Marcelês, “Mar” é só o Mediterrâneo), admirar suas falésias grandiosas e passear pelas ruelas floridas de suas cidades medievais. Apesar de nada compreenderem ao dialeto local, dissonante e esquisito, a ideia era poder se aclimatar aos poucos ao repouso, sob um céu e telhados de ardósia cinzentos. Poder andar sobre a areia grossa e pedregulhos polidos das praias, ainda que nem sempre com os pés nus. Molhar as canelas na água a 10°C em pleno verão. Inspirar o relento bitter-sweet dos ventos que sopram da vizinha Inglaterra. Reavivar rancores históricos e reafirmar o profundo orgulho de ser Marcelês. Permanecer em silêncio, diante de paisagens sublimes e violentas, assim como as paixões que eram incapazes de exprimir.
Pra essas famílias ou para as mais extravagantes, para as mais intelectuais ou as mais temerárias, as férias são – e sempre foram, desde que foram inventadas neste pedaço hexagonal do planeta – sinônimo de água. Não importa onde, não importa a forma. Como pretexto para escapar das famosas “canicules” que assolam as noites estivais, mas também para poder reencontrar algo de nostálgico e familiar ausente em todas as outras estações.
E foi justamente neste tão esperado mês de veraneio que Simone previu receber convidados, vindos diretamente de Brasa Hill. De uma terra onde a lembrança mais próxima da água para a juventude dourada (…folheada?) à qual pertenceram é a dos fins de semana em Maresias, no Rio de Janeiro, Guarujá ou em qualquer outro lugar cheio de onda, paquera, agito e fast food. Lá, onde cidades da moda têm mar, tem também musica alta, galerias climatizadas, sacolas de papel acetinado, feirinha na areia e uma infinidade de bugigangas inúteis e coloridas pra carregar. Já o conceito de”férias”, propriamente dito, possui para eles um outro significado: é o nome do tempo que serve para se dirigir a algum lugar onde se pode fotografar e ser fotografado, ver e ser visto, comprar, visitar e, de lambuja, pra poder em seguida contar: Miami. New York. Londres. Las Vegas. Wherever.
Ao soar o final do mês de julho, Marcel sonhava apenas com sol, água e alma apaziguada. Mas por causa de Simone e seus alegres visitantes, encontrou-se procurando souvenires e novidades nos corredores dos Grands Magasins de Paris que já conhece de cor, rodeado de turistas, máquinas fotográficas, hambúrgueres e algazarra.
Vazia em agosto, embora não menos sublime ao olhar estrangeiro que em qualquer época do ano, a cidade luz tem em agosto a propriedade de catapultar seus autóctones para longe, rumo a distrações mais litorais. Ainda que seja célebre pelo amor e pela cultura, a capital dos marceleses tem o defeito de se situar a centenas de quilômetros das melhores memórias aquáticas e afetivas de seus filhos no verão.
Os Brasahilienses finalmente partiram e Marcel retoma hoje seu posto de trabalho. Rios, lagos, cachoeiras ou as costas misteriosas e escarpadas da Bretanha terão de esperar. Este foi mais um verão de “Paris Plages“. E apesar do rosto corado e da expressão mais ou menos descansada, Simone sabe que, na sequência dos dias de terno que estão por vir, seu gaulês favorito vai continuar bufando…até poder ser devidamente regado, como merece, no ano que vem.
(Ou não.)
Flash Dicionário Luso-Marcelês
“Congés Payés” : O sonho de todo mundo, que seria ainda mais sensacional se durasse o ano inteiro : ser pago para não fazer nada.
“Burn-out” : Expressão inglesa bastante presente nas queixas francesas nos últimos anos. Veneno cujo único antídoto é, justamente, poder desfrutar de mais congés payés.
“Villa” : Casarão térreo de tamanho relativo. Pra um cheikh da Arábia saudita equivale a uma morada de 5 mil metros quadrados. Pra um parisiense pode ser um território coberto do tamanho de uma barraca Quechua.
“Vacancier” : Em português, a tradução para isso é “veraneante”. Melhor desconhecer seu significado em francês mesmo.
“Pastis” : bebida amarela fluorescente que dá uma dor de cabeça danada mas que é incontornável no verão, pois como todo mundo sabe : “Pastis aux Flots Bleus, pastis délicieux” (ou pelo menos é o que diz Patrick Chirac)
“Canicule” : Ondas de calor terríveis que chegam a 28 graus (!!!) . Um verdadeiro caldeirão do inferno.
“Gamin” : ser humano em estado de broto. Se existisse na França aquele famoso doce de festa junina feito de amendoim, ele seria provavelmente chamado de “Pied de Gamin“.
“Paris Plages” : o equivalente da margem do rio Pinheiros, só que urbanizada, pedestre, com espreguiçadeiras e sobretudo, sem esgoto. E com Parisienses em cima.