O país natal de Simone de Lyon é conhecido por suas longas séries televisivas de capítulos diários, mais conhecidas como “feuilletons” ou “novelas”. A maioria absoluta de suas estrelas vêm delas ou acabam atuando em uma delas.
Aparecer em uma novela é a consagração absoluta numa nação que ainda engatinha no campo do cinema (embora tenha feito grandes progressos, lenta e continuamente, a partir do final da década de 90). Para o ator televisivo, estar no elenco de uma novela é garantia de manter intacto o privilégio de recusar, ou participar de, poses para fotos, sessões de autógrafos, dedicatórias em camisetas ou honrarias em festas de debutante. Já para os atores de teatro, é uma meta que alguns se impõem por vaidade, outros pra poder simplesmente praticar o talento que já exerciam mas com a possibilidade de uma melhor remuneração. E enfim, para os mais ambiciosos, participar em um desses “feuilletons” é visto como uma espécie de trampolim para carreiras internacionais, com todo o burburinho, flashes e coroas de louros que eventualmente vêm junto.
Não importam as razões, em Brasa Hill são as novelas que oferecem as chaves para o pedacinho de eternidade almejado por todos aqueles que vivem do sucesso de sua própria imagem, como as folhas do trabalho de sua própria clorofila.
Na Casa do Marcel, há apenas uma novela, a ” Plus belle la vie” (algo que pode ser mais ou menos traduzido como “Vida melhor que boa”), que já dura 12 anos. Suas estrelas são deliberadamente menosprezadas pelas classes médias intelectuais e um tantinho metidas a besta (os famosos “bobôs“), que preferem passar suas noites diante de filmes incompreensíveis do canal Franco-Alemão ARTE ou das séries em V.O. exibidas pelo caro Canal+. Há mesmo quem apelide a tal novelinha de “Poubelle la Vie” (“poubelle” sendo aquele lugar onde todo mundo deveria lançar seus lenços de papel usados ou suas imputrescíveis bitucas de cigarro que entopem os bueiros).
Assim, nesta terra onde nasceu o primeiro filme, não é a novela e sim o cinema quem catapulta simples seres de carne e osso ao patamar de “estrela”. Mas isso não impede que, de tempos em tempos, algumas delas se aproximem do solo, oferecendo com generosidade e uma pontinha de condescendência, a oportunidade de observá-las de perto em tudo o que têm de mais humano.
Entretanto, ao invés de maravilhamento esperado, esse momento pode se revelar bastante duro para os fãs, reles mortais. Na verdade, costuma ser um tremendo choque, que provoca uma fissura necessária, mas profundamente dolorida, entre o mito e o ser, entre o símbolo e o real e entre a visão e a imaginação.
Ou ao menos, foi o sentimento que atingiu Simone, que como muita gente em Brasa-Hill também é mortal, já assistiu a muita novela, e agora é fã de Jane Birkin. Foi precisamente por esta razão que ela foi nesta semana ao Instituto Lumière, em Lyon, pra um bate-papo ao vivo com a famosa atriz inglesa.
Jane foi a musa de grandes artistas, entre eles o maestro John Barry (criador do célebre tema musical de James-Bond), o cineasta Lou Douillon e o compositor francês Serge Gainsbourg. Graças a ela, este dandy lascivo que se autoproclamava “l’homme à tête de chou” (“o homem com cara de couve” – certamente devido a sua beleza inversamente proporcional ao talento, que era imenso), superou a tremenda fossa pela qual passou após ter sido abandonado por Brigitte Bardot (cuja equação beleza/talento tinha um coeficiente angular menor, mas isso já é uma outra história. Matemáticos, cinéfilos e entendedores entenderão.)
Birkin inspirou Gainsbourg a compor alguns de seus maiores sucessos, entre eles segunda versão da apimentadíssima “Je t’aime moi non plus“ (a primeira, gravada com Brigitte, teve sua divulgação proibida pelo então marido da atriz). Bela, delicada, sexy, dona de cabelos impecavelmente lisos e de um sorriso irresistivelmente espontâneo, quase infantil, Jane Birkin representou durante muitos anos a encarnação da mulher ideal. Foi um ícone de estilo e de moda; um símbolo de uma juventude dourada e pretensamente rebelde que serviu de modelo para muitas jeune femmes francesas durante mais de uma década. Nas telas, foi a convidada adolescente e tímida de Alain Delon em “La Piscine“, modelo fotográfico em Blow-Up e lixeira andrógina em ” Je t’aime moi non plus“. Na vida real, foi cantora de sucesso, mãe de três filhas artistas e acabou por batizar a bolsa mais cobiçada do mundo fabricada pela também francesa Hermès.
Acalentando todas essas imagens e historietas na memória, Simone acomodou-se no veludo vermelho do assento do auditório do Instituto Lumière e esperou.
Uma hora mais tarde, quando a porta se abriu, uma senhora de setenta anos pequenina, de óculos redondos e cabelos em desalinho, desceu as escadas. Lentamente. Com muita, muita dificuldade. O corpo curvado, um suspeito ventre saliente centralizando seus membros finos e frágeis e um sorriso melancólico, estampado no rosto cansado em filigrana.
– Desculpem-me pelo atraso – disse ela ao público num fio de voz carregado de seu inconfundível sotaque britânico – eu estava em Londres para um enterro.
E emendou , para dissipar o silêncio :
– …no enterro de uma velha dama adorável e muito divertida. A cerimônia de despedida foi um pouco como ela…sensível mas engraçada. Como os ingleses sabem muito bem fazer.
Durante uma hora ela conversou, riu, contou anedotas deliciosas, fez comentários auto-depreciativos espontâneos e divertidos e fazia às vezes longas pausas para refletir, com visível nostalgia, sobre seus pais, alguns colegas de elenco e outras pessoas que amava e que foram tirando reverência, uma a uma, ao longo de sua vida. A ausência. O vazio deixado por Serge. Sua filha Kate, morta em 2013. Cada frase era construída por ela de uma forma peculiar, parecendo sair de um poema ou uma cantiga para crianças. So lovely.
Simone não teve dificuldade em entrever , através do ritmo e dos gestos, o ser humano interessante por trás do nome “Jane Birkin”. Ela apreciou, com sinceridade, o ser humano que estava ali, diante dela. Mas foi tomada também por um sentimento difuso, que se tornou um nó feito de uma espécie de melancolia embrulhada em resignação. É que diante da ilustre convidada, Simone teve a consciência de que jamais teria a oportunidade de se aproximar do verdadeiro mito que sempre admirara, porque esse permaneceu imóvel, intocável, mas lá atrás, em algum lugar dos anos que passaram demasiadamente rápido. Mito simplesmente incompatível com a pessoa real ali presente, a mãe, a viúva, a mulher Jane Birkin, velha senhora que fazia naquele instante, diante de um público silencioso, o balanço daquilo que restou de uma vida extraordinária e cheia de desafios que só conhecem aqueles que, como ela, frequentaram um dia o Olimpo das sociedades ocidentais.
Indiferentes a essa reflexão, centenas de celulares, flashes e selfies continuavam a registrar de perto a maior de todas as evidências: os grandes mitos acabam ficando pesados demais para serem carregados pelo ser humano que o representou ao longo de uma vida inteira. A idade avançada, a saúde precária e um certo pudor fazem com que estrelas como Jane Birkin sejam obrigadas a abandoná-lo em algum ponto da estrada, apenas para poder juntar as forças necessárias para levar até o fim a sua própria humanidade, imperfeita e perecível.
Deve ser muito difícil encontrar nos olhos que outrora eram só admiração, manifestações explícitas de espanto e pena. Assim como é difícil, para os donos desses olhos que somos, não nos deixar impressionar pela decrepitude que se exibe, opaca e definitiva, diante do que já foi ideal. Não pensar na decrepitude que nos espera, a nós também, seres que nunca tiveram o privilégio de experimentar o que se entende por glória.
Simone não vê mais novelas. Ela viu de perto Jane Birkin mas não teve a oportunidade de conhecer o ator brasileiro Domingos Montagner. Entretanto no dia de ontem, mesmo estando do outro lado do mundo e ignorando qualquer coisa sobre seu talento, ela soube que ele era uma estrela em seu país. Em plena ascensão. Homem grande, bonito, de riso franco e voz grave e calorosa, possivelmente capaz de derreter os corações mais indiferentes.
Na tarde do dia 15 de setembro de 2016, seu voo fulgurante e promissor foi interrompido por um acidente. No auge de seu sucesso – e talvez pra não se deixar queimar as asas pelo Sol da vaidade, que já atraiu e derrubou tantos Ícaros – Domingos se ocultou da maioria dos olhos que o rodeavam, despiu-se do pesado manto da fama e foi mergulhar, brincalhão, nas águas do Rio São Francisco. Só pra se sentir novamente menino. Só pra poder contar com a força e com a resistência daquele corpo de professor de educação física que fora, aquele que desafiava, intrépida e alegremente, as ruas de São Paulo montado em sua moto Ténéré.
Mas o rio, indiferente , não soube brincar. Engoliu o homem e devolveu, algumas horas mais tarde, o mito. O moreno forte que fora galã e palhaço, acabou partindo bem cedo, de forma abrupta, banal e definitiva.
O que resta agora é apenas a certeza de que seu sorriso largo nunca irá esmorecer pela separação obrigatória do homem e do mito na temido cruzamento da estrada da juventude com o caminho da velhice. Porque como se diz, o homem morre; o mito, não. Que, apesar de mínguo, seja esse para nós, expectadores da vida daqueles que vivem e se extinguem sob os holofotes da fama, o maior de todos os consolos.
O post Homenagem à la Francesa a uma estrela brasileira aparece primeiro no La Vie en Prose.