Todo mundo sabe que a Casa do Marcel é um país simplesmente maravilhoso. Por sua história, que tem uma importância enorme na constituição da civilização ocidental. Por sua geografia, que revela em apenas 1000km de alto a baixo e da esquerda para a direita (ou vice-versa) uma grande variedade de paisagens tão discrepantes como a Bretanha e a Côte D’azur . E por todas as outras coisas que não conseguimos explicar com palavras, mas que nossas entranhas, essas, identificam rapidamente, como a boa comida, a boa bebida e esse “je ne sais quoi” que faz desse país um gigantesco ímã de turistas. O maior do mundo, inclusive, bem na frente da Casa do Tio Sam.
Os habitantes da Casa do Marcel, entretanto, têm a reputação de chatos. Para os turistas, esse aspecto geralmente só é visível em sua expressão mais caricatural : a do garçom casmurro que dá medo.
Garçom casmurro que dá medo : ” Vocês são quantos pra jantar ? ” pergunta, como se fosse um delegado perdendo a paciência diante do suspeito ladrão de galinhas.
Pai de família turista : “Huh…somos dois…e um bebê de seis meses” , diz o rapaz com voz trêmula, como se de repente, ele sentisse a boca cheia das plumas irrefutáveis de um crime que pensava não ter cometido.
Garçom casmurro que dá medo : “Ah ! Então vocês são três ! O que vão querer depois das três entradas ?” diz, aumentando o tom de voz e fixando os olhos no turista amedrontado, que lê dentro deles : “Eu sei que foi você, meliante estúpido ! Devolva imediatamente a galinha senão sua língua vai conhecer o gosto de cada folha de papel deste bloquinho aqui na minha mão.”
E ainda assim, a Casa do Marcel continua recebendo mais de 85 milhões de turistas por ano (difícil imaginar o que seria se fossem super simpáticos!)
Mas a verdade é que, observando-os de perto, constatamos que essa chatice não tem nada de intencional: ela é, de fato,de origem filosófica.
Desde que mudou-se pra cá, Simone de Lyon tenta compreender o que leva os habitantes de um lugar tão sensacional a expressar constantemente tamanho mau humor. No início, achava que era uma ponta de arrogância, como a do delegado – digo, garçom – diante do ladrão de galinha – digo, cliente. Com o tempo, entretanto, foi percebendo que por baixo das crostas gélidas que atendem atrás dos balcões das boulangeries existiam seres humanos sensíveis como (quase) todos os outros.
Boulangère : “O que mais além das três baguetes ? – bufa, como se perguntasse : “Ah é ? Roubou uma galinha só? Faz-me rir”.
Cliente espiritualmente-elevada-quase-budista, na fila na frente de Simone : “Huh…uma fatia daquele gâteau bonito ali. Foi a senhora mesma quem fez?”
Boulangère : “Não mas… é verdade que ele é bom. Pronto, leve dois pedaços pelo preço de um, são os últimos mesmo” – diz, meio séria, meio sorrindo de canto.
Isso levou Simone à conclusão de que a agressividade passiva não é algo de intrínseco na alma dos marceleses. Existe, no coração de todo Iceberg gaulês uma parte oculta de afeto, tão delicada quanto a clara de neve de uma “ilha flotante” que deu certo. E ela decidiu investigar. Suas observações levaram 10 anos e hoje, para os turistas que já se perguntam se engolir folhas de uma cadernetinha esgarranchada pode fazer mal à saúde, ela publica três de seus principais resultados. São eles:
1 – Num primeiro contato, nenhum marcelês que se preze deve sorrir facilmente. Se, por acidente, surgir uma risadinha insubordinada, esse marcelês há de se sentir como um animalzinho fracote, ridículo e indefeso (I.e.: a própria galinha itself.) E como um animal não pensa, logo, ele não existe, já insinuava Descartes, que era René e não Marcel, mas que certamente não devia ser um homem muito dos simpáticos.
Esse comportamento atinge seu paroxismo no gênero feminino. Marcelesas raramente sorriem porque acham que somente assim serão levadas a sério. Para quem precisa de uma avaliação mais empírica desse fato, Simone recomenda vivamente assistir a filmes do tipo “La belle de Jour” de Buñuel ou qualquer outro que tenha a participação de atrizes como Catherine Deneuve, Isabelle Adjani, Charlotte Gainsbourg, Adele Exapopoulos, Mélaine Laurent ou Marion Cotillard. Só para citar algumas.
2 – Marcelês que é marcelês não deve, em hipótese alguma, demonstrar que apreciou algo. Um quadro, um livro, um filme, um pedaço de bolo da padaria. Ele nunca fará um elogio a qualquer coisa sem que ele saiba:
– quem foi o autor
– qual o significado
– em que raios essa coisa pode ser útil na vida dele
(exatamente nessa ordem).
Quaisquer desses critérios sem resposta relevante é sujeito a uma bufada entediada ou a um revirar de olhos desdenhoso. Mas atenção: não basta apenas enumerar qualidades; para se obter qualquer reação adicional, no caso do silêncio gerado diante do que foi apresentado, é preciso uma demonstração posterior baseada em fatos concretos, comprovados estatisticamente e acompanhados de bibliografia completa, senão o marcelês há de respeitar unicamente o que ele pode comprovar por si mesmo. Exemplo:
Simone : “Querido” – diz, saltitante, observando os 3 pacotes de sacos de lixo dentro da sacola que Marcel trouxe do supermercado – ” você gostou então desses novos sacos resistentes, impermeáveis e anti odores que eu comprei na semana passada ?”
Marcel : “Bof.”
Simone : (decepcionada) “Então por que você comprou tantos de novo?”
Marcel: “Porque são verdes”.
3 – É terminantemente proibido a qualquer marcelês mostrar contentamento com a vida que leva, apesar dessa vida estar inserida num território relativamente seguro, de clima agradável, onde os cuidados médicos são em sua maior parte gratuitos (ou bem reembolsados) e onde os mais desmunidos habitam imóveis de aluguel moderado que parecem saídos de bairros de classe média alta (aquela que tem aspirador de pó) em Brasa Hill. Caso em uma discussão animada um participante não tiver algum descontentamento a manifestar, ele será imediatamente considerado pelo grupo como alguém “intelectualmente desafiado” (tradução simultânea do politicamente correto para o português: um idiota que baba e tem um QI de chimpanzé ). Marcelês que é marcelês reclama. Da política, do tempo, do patrão, da conjuntura econômica, dos condôminos. Não se pode levar a mal; é a natureza dele.
Uma vez que essas três características principais foram identificadas em sua longa pesquisa, a gangorra emocional de Simone de Lyon finalmente se estabilizou. E, baseada em suas conclusões, ela aconselha:
“Turista, visitante, habitante ou vizinho: quem não rouba galinhas não deve se sentir como um ladrão delas, mesmo se o interlocutor marcelês a sua frente queira convencê-lo do contrário. Diferenças culturais podem causar sempre mal-entendidos.”
Graças a essa sábia constatação, ela mesma deixou de planejar, a cada jantar que prepara para o marido, a cada pedido de um jambon-beurre num café parisiense ou a cada reunião com seu chefe, uma fuga desesperada e épica para a Cochinchina. Graças a isso ou porque ela descobriu que, apesar de ser o ideal de lonjura pra muita gente, a Cochinchina era na verdade uma região do Vietnã colonizada por… marceleses.
Pensando bem, nunca é tarde para se converter ao budismo.
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As ilustrações desse post (exceto o saco de lixo verde) são do sensacional livro “Le Grand Méchant Renard” (A grande raposa má), de Benjamin Renner. Editora Delcourt, Coleção Shampooing, 2015.