Na última terça feira de manhã, Marcel acordou com uma baita ressaca. Fazia tempo que não tinha uma dessas. Apesar de botar banca de bon-vivant-degustador-de-vinhos, ele não bebe exageradamente, porque sofre de uma obscura síndrome conhecida como “vinho triste”, estado de ebriedade em que a pessoa fala que te considera pra caramba e chora quando ouve “Comme d’habitude”, de Claude François (vulgo Cloclo).
Mas não é preciso ir muito longe pra descobrir as razões desse inabitual super-porre. Apesar de fazer de conta, como todo marcelês, de não gostar de nada que venha da Ilhaterra (reino flutuante que também deu uma baita dor de cabeça a Joana D’Arc), Marcel não aguentou o tranco do 11 de janeiro de 2016. Sombria segunda-feira aquela, em que ele e outros portadores de orelhas que cresceram ao longo dos anos 70 descobriram que David Bowie era um reles mortal.
Incrédulo e abalado com a notícia desse falecimento, ele chegou em casa após o trabalho e resolveu tomar sozinho uma garrafa inteira de Beaujolais nouveau 2015 que encontrou no fundo do armário. E ao invés de chorar como de costume ao som da voz anasalada de Cloclo (cantor ultra celebre da Casa do Marcel, cujo look lembra o de uma velha tia loira cheirando a laquê Elnett), a trilha sonora da bebedeira de Marcel seria naturalmente “Life On Mars?”.
Nostálgico, ele lembrava de ter guardado alguns discos de vinil de sua adolescência, emprestados de um tio meio rebelde e fã de rock inglês. A agulha desceu sobre as ranhuras de Hunky Dory e, junto com acordes iniciais, chegaram também as primeiras lágrimas. Marcel começa a cantarolar os primeiros versos ” Itz a god-awful small affair, to ze girl wiz ze mousy air…” com seu indefectível (mais “so mignon!) sotaque marcelês. Mas…algo chama sua atenção : pela primeira vez em sua vida de fã de Bowie, ele nota que os acordes de piano que abrem essa canção se encadeiam de uma forma estranhamente familiar, lembrando justamente o início de… “Comme d’habitude” ! Será que já estava tão bêbado a ponto de escutar Claude François no lugar de David Bowie ? Retomou o trecho de introdução uma, duas, três vezes: apesar dos tempos diferentes, havia algo de realmente similar entre os dois títulos. Achou que estava delirando (afinal, todo mundo sabe os riscos que corre ao tomar Beaujolais nouveau fora da terceira quinta-feira dos meses de novembro) e acabou embarcando num sono agitado, povoado por extraterrestres, paisagens psicodélicas e homens vestidos de mulher.
Se na manhã seguinte Marcel não estivesse com uma baita enxaqueca, teria descoberto, para sua grande surpresa, que não fora o vinho ruim que provocara aquela estranha sensação de déjà vu ao comparar as duas músicas. As mídia especializadas, orgulhosas das influências marcelesas nos primeiros sucessos de Bowie, começaram a divulgar logo cedo que “Life on Mars?” foi sua “vingança musical” contra a perda dos direitos de adaptação da mais famosa canção de Cloclo.
Em 1968, a versão em inglês de “Comme d’habitude” foi confiada ao roqueiro camaleão que, ainda meio verde na carreira, a transformou em “Even a fool learns to love”. Sua versão, entretanto, não era lá muito boa (fato admitido pelo cantor mais tarde) e os direitos da melodia acabaram indo finalmente para as mãos do compositor canadense Paul Anka. Sua adaptação, batizada de “My way” transformou-se em uma das canções mais famosas de todos os tempos, tendo como intérpretes estrelas de calibre, como Frank Sinatra e Elvis Presley.
Mas a história de David Bowie com o pais hexagonal não terminou com esse pequeno acidente de percurso (que o fez, diga-se de passagem, perder a oportunidade de ganhar muito, muito dinheiro). Houve também episódio de seu romance com a bela – e não menos andrógina – cantora Amanda Lear. Ela afirma tê-lo ajudado, entre uma orgia e outra, a compor o personagem de “Haloween Jack” , avatar que veio depois de Ziggy Stardust e de Aladdin Sane e que precedeu Thin White Duke (…ah, essa mania que os artistas têm de consumir substâncias que transformam todo mundo em discípulo de Fernando Pessoa!). Teve ainda as anedotas do tempo em que residiu em Val d’Oise e gravou no mítico estúdio do castelo de Hérouville, onde ele teria conhecido a vietnamita Kuêlan Nguyen (ex-companheira do cantor marcelês Jacques Higelin). Diz a lenda que é ela a musa do que viria a ser o sucesso planetário “China girl”. Tantos são os indícios que provam que o amor dos habitantes da Casa do Marcel por David Bowie era recíproco e que certamente contribuíram a elevar o cantor ao patamar de ícone mundial…
Quando o despertador toca na terça-feira 12, Marcel tenta se levantar da cama mas os móveis do seu quarto ainda parecem flutuar mais que a cápsula do Major Tom. Arrependido do crime de lesa-majestade hepática cometido na véspera, ele se pergunta por que raios a morte de certos artistas nos atinge quase tanto quanto a perda de um ente querido. Seria pela coragem que eles nos dão ao tomar o microfone da boca de nossos pensamentos mais íntimos, contando em voz alta aquilo que não nos atrevemos a dizer bem baixinho? Ou seria porque nos ensinam que, ao contrário do possam dizer família, amigos ou a sociedade em geral, se dedicarmos nossas vidas àquilo para qual ela é destinada (seja por nossas verdadeiras aptidões ou talentos), nossa chance de deixar no mundo marcas indeléveis é muito maior?
Enquanto toma uma xícara de café bem forte, Marcel se arrisca a concluir que despedir-se de um artista como David Bowie é difícil porque nos leva principalmente a refletir sobre o que deixaremos para trás quando for a nossa vez de virar estrela extinta. Faz pensar sobre o que temos realmente feito com os dons recebidos pela natureza, pela cultura e pelo berço e se estamos trabalhando o suficiente para transformar tudo isso em algo que realmente importa. É um grito do tempo que urge, que nos incita a agir, a interagir, a criar, sob pena de desaparecer para sempre.
Para alguns, a trajetória que vai do nascimento à morte nada mais é do que uma viagem sobre trilhos; para outros, é uma árdua e incessante busca pela compreensão do milagre da existência. Para David Jones, essa procura foi feita através de Ziggy, que se tornou Alladin, que se transformou em Jack, que se metamorfoseou em Duke, e que se assumiu em Bowie… Até chegar o momento de atravessar a ultima etapa de sua breve passagem pelo planeta. Ele se tornou então Lázaro para contar ao mundo, através de seus olhos invulgares, o que ele havia finalmente compreendido : o poder da criação é maior que o da própria finitude. Somente aquele que age e cria é o que ressuscita, pois o homem vira pó ; seu legado, não.
Ainda meio tonto por causa do vinho ruim (e por tantas questões existencialistas desencadeadas pela perda de mais um ídolo), Marcel toma um comprimido de Paracetamol e prepara-se para mais um dia de trabalho. Escondendo-se por trás de seus óculos escuros e fechando o zíper de seu sobretudo, ele apressa o passo : a essa hora os vagões da linha Marie de Lilas – Chatelet já devem estar todos lotados.