Ah, Cannes, Cannes. Joia conceitual da ” Côte d’Azur”, cidadezinha apertada entre o luxo e o mar, sede do palácio dos festivais, de hotéis impregnados de uma nostalgia suntuosa e ligeiramente “dépassée“, com seus cassinos, grifes famosas e vestidos indiscretos, deslizando do anonimato à consagração no curto tempo da travessia de um tapete vermelho.
Impossível visitar Cannes sem admirar a diversidade de seus transeuntes, formas “meio-criaturas, meio-mundanas”, como as que habitam os livros de Françoise Quoirez, pequena peste que se apresentou ao mundo nos idos dos anos 50 como Françoise Sagan.
O famoso evento em torno do Cinema vem com o mês de maio, anunciando dias ensolarados e azuis como a costa que batiza a região. Ao pé do massivo do Esterel, as movimentações estivais vão pouco a pouco animando a cidade, docemente bicotada por veleiros e iates brancos amontoados ao redor dela como mariposas diante da luz. As silhuetas das “Villas” brancas, eclipsadas pelo verde que retoma suas forças nesta época do ano, suscitam curiosidade em alguns e, principalmente, inveja em outros.
Nesse cenário, onde tudo é conforto, bom gosto e brisas tépidas, não é difícil deixar-se levar pela tentação de compor o roteiro cinematográfico imaginário das vidas que irão provavelmente se passar entre suas paredes logo mais, no verão. Como seriam os personagens que habitariam essas casas ? Um coroa bonitão e meio Don Juan, por exemplo? Acompanhado de uma manequim ruiva, comprida e um pouco cabeça oca, desfrutando, dentro de uma casa de conto de fadas moderno, de uma relação física e despretensiosa?
Obviamente, para aqueles cujo único luxo permitido é o de poder inventar seus próprios scripts mentais lá embaixo da colina não é concebível, nem mesmo num exercício individual de imaginação, que esses personagens passem um verão perfeito. Já basta a boa fortuna com que a providência os agraciou na vida real. A cobiça (compreensível, é verdade, mas não menos maldosa por isso) dos sujeitos cujas vidas são feitas de contas a pagar e de “métro, boulot, dodo“, pede uma narrativa cheia de intrigas e sangue. Sangue!
Mas é verão, e como diria o Tio Charles (Aznavour), parece que a miséria é menos sofrível sob o sol: os turistas que passeiam pela marina e invadem em pensamento barcos e casas sem pedir permissão querem tirar férias também da violência cotidiana dos filmes de médicos-legistas e de telejornais. Seus filmes secretos e inventados seguem então sem hemoglobina, mas não sem uma boa pitada de tensão: o que poderia então ser o maior dos desmancha-prazeres de um cara tão sortudo?
Uma filha adolescente, é claro !
Esse tiozão sedutor e cheio da prata merece uma dessas (a vida não deve ser fácil pra ninguém, senão seria muito injusto, não é mesmo?). Uma daquelas bem mimadas e convencidas, que fazem biquinho num ângulo de exatos 45° diante de seu telefone celular, enquanto são embaladas pelo barulho do mar, pelo canto das sereias e por uma vida sem grandes preocupações. E enquanto esse Clooney do George Clone estiver fazendo malabarismos pra esconder uma barriga meio sem-vergonha que começa a despontar com a idade (e com as noites regadas a bom uísque, a riqueza deve ter fatalmente também seus efeitos colaterais físicos) , sua progenitura juvenil, bomba de pele dourada e pernas longilíneas, entra na água bem cedinho todos os dias pra lavar seu espírito meio rebelde-meio blasé, das sombras e poeiras de Paris (afinal, ninguém é de ferro). Deitada na areia, ela se distrai deixando escapar os grãos por entre seus dedos, cascata luminosa e fofa que é também uma alegoria fácil do tempo que foge. Mas, não nos esqueçamos, será verão. E no verão todas as ideias fáceis dos roteiros improvisados são perdoadas (se os são até nos novos episódios de Star Wars…)
Sem grandes surpresas, essa menina terá necessariamente ciúmes de seu pai. Não muito enquanto ele estiver acompanhado do seu cabide ruivo e desmiolado, mas intensamente quando ela descobrir que uma amiga da família, espécie de coquetel explosivo composto por meia dose de galerista de arte, meia dose de heroína de filme de Hitchcock , vem se juntar ao trio. A jovem pressente os sentimentos amorosos dessa mulher em relação ao seu moleque de pai e a hostilidade e a admiração que ela nutre em relação à outra, espécie de figura materna na falta de uma melhor, vão dando lugar a um mini-plano maquiavélico (niak-niak-niak) para ejetá-la dessa sua vida pré-adulta feita de abundância, tédio e de um finzinho de complexo de Electra mal resolvido. Mas é verão: ninguém precisa de um superego ativo e operacional.
O fim da história ? Ora, o luxo da costa mediterrânea francesa não merece spoilers : cada roteirista de domingo pode imaginar o que se passa em seguida nesse “huis clos” de uma família parisiense abastada e singular em veraneio. A não ser que ele já tenha lido “Bonjour Tristesse”, da danada da Sagan, aquela mesma que parece ter inventado cada pedestre da La Croisette, que vai do hotel Martinez à minúscula praia do outro lado da avenida carregando consigo uma certa aura de inacessibilidade junto seu “cabas” e seus óculos de sol tamanho XXL.
Vale lembrar que os personagens dessa trama rocambolesca – que poderiam perfeitamente ter sido criados como remédio anti-despeito por uma certa middle-class a passeio na Europa – foram originalmente criados por ela (sem o detalhe do selfie, é claro. A juventude dos anos 50 era mais ambiciosa). Considerada como um “monstrinho sedutor” do mundo das letras, Françoise Sagan soube recriar com precisão quase cinematográfica, ao longo de sua vida e obra, a atmosfera “nonchalante” que contextualiza as vidas de uma burguesia francesa feita de elegância, individualismo e aparências. Uma das pouquíssimas mulheres convidadas a presidir o júri do festival de Cannes, Madmoiselle Sagan será para sempre sua rainha e musa literária, coroando a partir de cada mês de maio, com uma palma (ou pluma?) de ouro a imaginação fértil daqueles que, vindos de um mundo distante, sonham com os problemas e as tristezas que jamais poderão ter no verão, dentro dentro de uma mansão envidraçada da magnifica Côte d’Azur
Opinião de Marcel sobre “Bonjour Tristesse”:
Se fosse nos dias de hoje, ao invés de ir embora de carro, Anna (a tal amiga meia-galerista de arte,meia-heroína de filme de Hitchcock) teria voltado pra espreguiçadeira e se conectado imediatamente ao Tinder. O amor nos dias de hoje pode ser mais complicado, mas, automobilisticamente falando, é MUITO menos arriscado.
Opiniões por aí :
Invejinha branca é quando o invejoso coloca no meio de uma encruzilhada uma galinha branca no lugar de uma preta. Como diferença, é só.
Flash Dicionário Luso-Marcelês
“Villa : Casarão térreo de tamanho relativo. Pra um cheikh da Arábia saudita equivale a uma morada de 5 mil metros quadrados. Pra um parisiense pode ser um território do tamanho de uma barraca Quechua.
“Dépassé“ : Conceito não muito glorificante que pode se tornar super-tendência de um ano para o outro. Ex:
Sinônimo em 2015: “Acabado”.
Sinônimo em 2016 : “Vintage”
“métro, boulot, dodo” : Sequência que representa uma rotina cotidiana que não pode ser aplicada nem em Saint Malo (onde não tem metrô), nem em Saint Tropez (onde quem gosta de balada não vai querer fazer dodô antes das 5 da matina) e, infelizmente, nem nas cidades do interior de Brasa Hill (onde está cada vez mais difícil achar um boulot com um salariô pra pagar as contas de eletricidade no fim do mês)
“Huis Clos“ : aquele lugar onde você é obrigado a ficar aos domingos quando chove lá fora e o tio resolve discutir a política do PT na mesa depois do almoço.
“Nonchalant“ : estado de espírito do marido quando é obrigado a dar sua opinião sobre um novo sapato ma-ra-vi-lho-so que sua mulher viu na vitrine.
“Meio rebelde-meio blasé“ : estado de espírito desse mesmo marido quando a mulher insiste na questão.
“Cabas” : Bolsa com alças. Não confundir com “malas sem alças” que nunca saíram com ninguém.