O dia dos namorados de Simone de Lyon

Dizem que o sentimento amoroso é universal; suas manifestações, entretanto, podem ser diferentes de um país para outro. Por exemplo : em Brasa Hill, o dia dos namorados é no dia 12 de junho, véspera do dia de Santo Antônio. Já  na Casa do Marcel,  o dia dos namorados é, como na maior parte dos outros países Europangeus, no dia 14 de fevereiro, dia de São Valentim. Na verdade, não existe nem mesmo o termo “namoro” nestas terras hexagonais. A mulher acompanhada diz que ela “tem alguém na sua vida”. O homem comprometido diz que tem uma “amoureuse“, palavra que não define uma situação estática ocupada por alguém (por exemplo, uma “namorada”), mas representa um julgamento dos próprios sentimentos dessa pessoa  em relação a ele (“amorosa”, “apaixonada”, “aquela que ama”…)

Quando Simone chegou a Lyon, ela achou tudo isso muito complicado. Afinal, parece ser algo um pouco pretensioso descrever os sentimentos de alguém que compartilha sua vida no lugar dele mesmo. Pretensioso e, de certa forma, perigoso também : primeiro porque a leitura do coração alheio é tarefa complicadíssima, cuja interpretação é muitas vezes distorcida (se nem o próprio dono consegue entendê-lo às vezes!). Segundo, porque se realmente é o tipo de sentimento que define o papel que o outro tem em sua vida, os desdobramentos que podem seguir o estado”amoroso” podem acabar descambando pro acerto de contas nas reuniões entre amigos :

– Quem é esse homem que estava com você ontem no jantar?

– Ah, o Augusto? É o meu “perverso-narcísico”.

– Faz tempo que vocês estão juntos ?

– Contando o tempo em que éramos apenas “carinhosos” ou desde que ele se tornou meu “carrasco emocional” oficial ?

Pensando bem, a definição estatutária utilizada comumente em Brasa-Hill (namorado/ namorada) facilita bastante a convivência entre duas pessoas que estão juntas, já que pode preservar as múltiplas facetas de cada um sob o manto do anonimato sentimental. E, quando o tal do “namoro” acaba, existem ainda eufemismos dialéticos na língua desse país muito úteis pra sair de uma situação complicada, sem arrebentar com a dignidade de um dos envolvidos; a história de um casal chega ao fim, mas o mistério dos sentimentos que estão por trás dessa separação perdura: “O problema não é você,  sou eu”; “Estou passando por uma fase confusa”; “Não quero compromisso sério agora” –  ou o pior de todos em termos de opacidade – “Sei lá, acho que tenho medo de me envolver”

Na língua Marcelesa, essas espirais semânticas, formuladas em princípio pra evitar mais sofrimento nas rupturas amorosas (mas que na verdade servem mesmo é para evitar covardemente o desconforto do desespero alheio)  geralmente não são empregadas. Como em todos os outros campos mais práticos de suas vidas – como o atendimento a um cliente, a um paciente, a um funcionário – os Marceleses vão direto ao ponto : “je ne suis plus amoureux(se) de toi“. Não te amo mais. Simples assim. Talvez você tenha pisado na bola. Talvez seu perfume acabou  enjoando. Talvez você seja na verdade uma das pessoas menos interessantes que o/a declarante já encontrou. O sentimento se evaporou e é provável que você seja o culpado, por incompetência, inaptidão ou negligência. Vire-se com isso.

Essa sinceridade, simples mas desconcertante, é a mesma em “essa tua apresentação Powerpoint está uma porcaria”, “esses sapatos são ridículos” ou “seu comportamento na reunião foi patético”. Marcelês que é Marcelês deve ser um duro, ter a auto estima de aço, a língua livre e os nervos em fibras de carbono. No amor, no trabalho, na vida.

Talvez pra compensar tanta objetividade,  justamente o verbo “amar” é empregado nestas terras para exprimir tanto algo que agrada quanto aquilo que arrebata. As únicas nuances estão na intensidade desse sentimento. Amar muito. Amar bem. Ou, paradoxalmente, a versão mais forte e o mais lacônica de todas : apenas amar.

– Ele me disse: “Je t’aime”.

– Já!? Tem certeza!? Não foi “Je t’aime bien”ou “Je t’aime beaucoup”?

– Não. Foi apenas “Je t’aime”. Uma única vez, com os olhos dentro dos meus.

-Então já é.

E foi assim que Simone de Lyon descobriu em uma conversa com uma amiga que o Marcel dela a amava. Ele não era um ficante. Ele não era um namorado. Ele apenas a amava, doce, profunda e surpreendentemente, como quem dorme com um botão num vaso e acorda na manhã seguinte diante de uma magnifica e indescritível flor. Sem adjetivos, acessórios ou subterfúgios para aprisionar esse sentimento num espaço de tempo ou status. Hoje, chamar seu Marcel de marido parece tão pouco diante da força daquilo que se enraíza cada dia mais e mais profundamente em suas vidas.

Num restaurante tranquilo, longe das festas comerciais e dos menus pré-fabricados, Simone e Marcel comemoram o dia 12 de Junho, como se fosse um segredo só deles. E sabem que independentemente de Antônios e Valentins, o que eles sentem um pelo outro  é o que deveria ser de mais universal. Afinal, no amor, todo mundo merece ser feliz.

Tim-tim
(ou em marcelês: Tchin-tchin)Dia dos namorados num restaurante estrelado                                                                                                        Chez Guy Lassausaie : Dia dos namorados cheio de estrelas, nos olhos e no menu…

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *