” A voté”

a voté copieEm seu país natal, a longínqua Brasa Hill, Simone de Lyon atribuía à politica a mesma importância que dava ao último selfie de Kim Kardashian. Considerando-se  que, até idos de 2006, “selfie” era uma palavra que nem sequer existia e que a única Kim que seus expedientes de 9 às 20h lhe permitiam conhecer era a Basinger, de 9 semanas e 1/2 de amor, pode-se dizer então, sem grande margem de erro, que “Simone” e ” política”  faziam tanto sentido numa mesma frase quanto “filosofia” e “Donald Trump“.

Não que fosse completamente alienada: conhecia perfeitamente conceitos como “direita” e “esquerda” (relógios de pulso têm outras utilidades além de  mostrar a conta-gotas  a vida que se esvai). Estudara as linhas gerais de Marx (e não dos irmãos!); informara-se sobre economia e seus diversos  mecanismos, como os sistemas de Taylor (mas não a que se casou duas vezes com Richard Burton…) e de Ford. Lera também as teorias de Adam Smith e de Keynes (também mais pra Oeste que pra Leste, mas esse foi mais precavido e não se casou com nenhum membro da familia Kardashian).

Incomodava-se com os abismos sociais de seu país e ia votar. Mas só quando não estava viajando para o litoral com amigos.

Demorou mais de dez anos para transferir seu título.

Em sua defesa, pode-se tentar justificar essa ausência de iniciativa cívica pela sua história : Simone nascera numa pequena e comportada família de classe média, numa época em que crianças que acordavam mais cedo que os pais aos domingos esperavam pelo café da manhã esparramados no sofá diante da “Semana do Presidente”, resumo da semana do General Figueiredo, inserido nos intervalos dos programas de Silvio Santos. Ainda era pequena quando artistas, pensadores e outras pessoas, então cheias de boas intenções, saíram às ruas, agitando bandeiras e pedindo “Diretas já”. Tinha ainda pesadelos com bruxas e outros seres imaginários quando uma faixa negra, colocada no canto superior da tela de todas as emissoras, simbolizou o luto por Tancredo Neves, presidente que se fora sem nunca tê-lo sido.

Em 1989, torcera pelo torneiro mecânico, um homem que na TV parecia humilde e cheio de coragem, clamando a injustiça dos poderosos em sua luta na oposição a uma espécie de réplica em tamanho natural do boneco Ken, que acabou por ganhar de qualquer jeito as eleições. E se perguntava, do alto de seus quinze anos: e se o fim da desigualdade estivesse nas mãos de um ogro e não nas de um príncipe?

De qualquer forma, naquele fim de década, Simone ainda não tinha idade para votar.

Também não foi cara-pintada. Estava no primeiro ano da universidade quando soube da destituição do tal “galã” que caçava marajás. Mas nessa época, estava ocupada demais tentando domar seus próprios demônios, todos sentados ao lado dela no ônibus intermunicipal que a separava, a cada semana, um pouco mais do calor protetor das asas de seus pais.

Gostou de quando foi instaurado o Real. Pelo menos o que ela gostava num dia não custava o dobro no seguinte. E ficou também bem mais rápido calcular suas despesas semanais, sem aqueles zeros todos.

Enfim, o homem da estrela vermelha se reapresentou. E dessa vez, ganhou. Simone não votou nele (dessa vez, ela  também tinha descido com os amigos para o litoral), mas ficou emocionada ao vê-lo subir as rampas do Planalto: primeiro porque, enfim, assistia ao vivo ao desabrochar dessa flor, a tal chamada democracia, onde bastava-se ter vontade, determinação e ideias pra mudar o rumo de um país. Segundo (e principalmente), porque o personagem em questão era muito, muito parecido com seu avô, e ela tinha a impressão de que era ele quem estava se tornando presidente.

E, entre tantos outros e outras, ela também quis acreditar : era, de fato, uma aposta arriscada, na verdade quase um pensamento mágico, do tipo, “ok, as duas turbinas estão queimadas, o combustível está acabando, o aeroporto mais próximo fica a 300 km, mas vai surgir (certamente há de surgir!) uma lufada de vento que vai nos permitir planar até lá e chegaremos sãos e salvos”.

Até que, o que não deveria jamais ter acontecido, aconteceu: esse homem, cujo discurso era o de diminuir a miséria, re-estruturar o país, reequilibrar as discrepâncias extremas entre as classes para que todos vivessem em  harmonia, acabou dando razão a todos os que desconfiavam dele.  E pior : deu argumentos para aqueles que sempre preferiram acreditar que a ideia de uma sociedade sem castas, sem cercas elétricas e sem esgotos a céu aberto só poderia ser o fruto de uma mente vil, manipuladora e corrupta.

Em sua trajetória para longe de seu planeta natal, Simone viu a mais bonita das utopias ruir, sentindo-se culpada por apenas assisti-la de sua espaçonave,  sem nada poder fazer.  E a dor foi maior quando, ao aterrissar em seu novo habitat, ela constatou que viver num lugar com transportes públicos de qualidade, saúde gratuita, ruas inofensivas e prédios sem porteiros era possível sim. Bastava apenas se organizar. E melhor distribuir.

Mas em dez anos, entretanto, com empresas desaparecendo, com a população crescendo, com as sucessivas crises mundiais, o exemplo do que poderia representar uma sociedade funcional e verdadeiramente mais humana (sob o aspecto unicamente evolucionista do termo) parece agora estar se esfacelando, sob o peso de fatores incontestáveis: a exclusão, que veio engripar os elevadores sociais, tão necessários para que cada um possa gozar de sua própria “Liberdade”; o comunitarismo, que parece buscar enterrar, com a mesma pá com que aprofunda fossos,  o conceito de “Fraternidade”;  e enfim, os  meios atuais de comunicação, tão importantes, tão rápidos, mas tão crus, que, contra toda noção de “Igualdade”, não param de esfregar nos narizes dos jovens só aquilo que eles não têm e que lhes escapam, injusta e inexoravelmente, cada dia um pouco mais.

Incapaz de suportar à demolição daquilo que era para ela, até então, um exemplo no qual deveria se espelhar qualquer outra nação que se queira “desenvolvida”, Simone, apesar de ainda (e sempre!) não ter o menor interesse pela vida da Kim Kardashian, decidiu que não poderia mais fingir que a política não existe. Não podia mais continuar a agir como se uma única voz, a sua, não fosse importante.  Suas origens e o contexto em que viveu talvez tenham dado a ela a impressão de que, seja lá o que for, nada que possa fazer terá impacto no futuro da sociedade em que esteja vivendo. Mas essa impressão é totalmente falsa. É conformista. É um pouco covarde. E é mesmo irresponsável em relação à sua própria vida, pois pensando bem, equivale a entrar por vontade própria num avião onde se sabe, pertinentemente, que será  pilotado por um chimpanzé. Mas que continua otimista, a se perguntar: “afinal, quem garante que esse bicho não sabe voar ? Se já há até uma prova científica (o Teorema do Macaco Infinito) de que, se o o dito-cujo for deixado durante a eternidade diante de uma máquina de escrever, ele é capaz de escrever a obra completa de Shakespeare…

Simone acordou cedo neste domingo de sol, de brisa e primavera, mas não foi passear. Como se fosse a primeira vez em sua vida, ela se encheu de orgulho, de consciência cívica e de esperança e foi votar. Pegou o nome do seu candidato, entrou na cabine, respirou fundo, colocou no envelopinho. Ao depositá-lo na urna, o mesário registrou o voto, e repetiu, com a mesma solenidade com que se anuncia a passagem de um monarca ou, no caso dele, de um outro eleitor diante da caixa de acrílico transparente :

– A voté!

“Votou !”
E ela volta pra casa, contente, descobrindo o bem danado que faz votar por convicção e não por obrigação. E vai pensando que pode até ser que, sob a pele do novo piloto desse país que hoje é também o seu, habite na verdade o tal do macaco. Mas aí, se tudo der errado, já não será mais por conta do tal pensamento mágico: será obra de um baita azar mesmo. E então só restará a ela, aos habitantes da Casa do Marcel, à Europa e ao Mundo inteiro torcer pelo infinito.

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